sexta-feira, 6 de abril de 2007

"Canalha" e as serestas antigas.

A Canalha e as serestas antigas

Não é de hoje que uma das práticas da boemia mais valorizadas pelos patuscos de todos os tempos é a seresta ou serenata. De lugares e tempos afastados da memória surgem notícias de rodas de boêmios acompanhados de instrumentos musicais – modernamente quase sempre o violão – que perambulam pelas madrugadas das cidades a cantar para uma amada qualquer ou simplesmente a cantar para a lua ou a uma musa vagabunda que lhes inspire. Não é à toa que Câmara Cascudo em sua monumental obra Dicionário do Folclore Brasileiro chega a dizer que as serenatas são práticas comuns a quase todos os povos históricos e afirma que já entre gregos e romanos essa prática ocorria. E considera, por fim: “cantar à porta de seu amor é direito consuetudinário e milenar”.

Na nossa “gostosa” e querida Belém de outrora, assim como em todo o Brasil, as serenatas eram muito comuns em quase todo o século XIX até as primeiras décadas do século XX. Um dos relatos mais antigos sobre isso é encontrado no jornal Diário de Noticias em 1º de agosto de 1886, por Sganarello, pseudônimo de Antônio de Pádua Carvalho. Numa crônica bastante desaforada e cheia de preconceitos aos moços que viviam a beber e cantar nas madrugadas da cidade Pádua Carvalho relata:

Multiplica-se a malandragem a escorregar invisivelmente por entre as barbas policiais (...).

A rua do Rosário muito freqüentada por meia dúzia de rapazes, empregados nas diversões, trovadores de alta noite, inimigos do socego público (...).

Ainda uma noite d’estas, queixa-se um amigo, as cocettes d’essa rua foram embaladas pelas melodias de um melancólico violão, de um (...) cavaquinho e de uma fastidiosa sanfona, instrumentos de vez em quando interrompidos pela voz fanhosa do trovador (...).

D’ahí a pouco a cachaça vinha por ventura do café do canto (...).

Entendemos que se devia prohibir as deveras esses ajuntamentos lyricos, que cheiram á desordens, no centro da cidade(...).

Trabalho pra essa gente poetica!

Mas nem todos viam as rodas boêmias com maus olhos. José Eustachio de Azevedo, poeta e patusco inveterado relembra, em suas memórias, de seus bons tempos de boemia ao luar no seu Livro de Nugas (Belém, 1924). Um caso interessante foi o ocorrido no largo da pólvora onde ele e outros boêmios perambulavam pelo logradouro público nas barbas da “patrulha” a farrear e dançar até que um dos componentes resolveu ir para o seu quintal com a turma e lá iniciar uma animada seresta:

Fomos para o fundo da casa. O luar, - nunca mais vi outro assim! – inspirava-nos, além da inspiração que já tínhamos...

- Agüenta a nota, poeta! Berrou o Zéca, enquanto o violão estremecia, chorava, gemia, nas mãos do ‘Papapa’!

O resultado, como relata ainda J. Eustachio, quase termina em confusão:

Passado tempo a vizinha Umbelina, que morava junto da casa, contava à minha velha mãe que quase endoidece naquella noite, e que já tinha resolvido ir dar parte á polícia, se aqueles vagabundos continuassem, na noite seguinte, com as taes serenatas.

A sorte é que as serenatas não continuaram. Não na noite seguinte, pelo menos...!

Outro poeta-boêmio inveterado foi Bruno de Menezes. Todos nós já devemos ter ouvido histórias desse literato e seu grupo a perambular pelos bairros distantes de Belém atrás de um bom batuque. Um de seus parceiros preferidos nesses passeios noturnos não foi outro se não Tó Teixeira, que já faz parte da história da música popular paraense. Pois bem, é Bruno de Menezes que nos dá notícia de uma deliciosa seresta na Santarém de outrora, de idos dos anos de 1950. Vejamos o relato que em si já é um embriagar-se ao luar (Revista Amazônia, ano I, nº. VIII, Agosto de 1955):

Na primeira quinta-feira dêste agosto que se findou, uma lua imaculada subia por traz do morro, que caracteriza a fisionomia da cidade de Santarém, na confluência do Tapajós como o Amazonas.

Alternando-se a iluminação da cidade, para favorecer determinados bairros, as ruas ficaram com os calçamentos e com as fachadas das casas empoalhadas pela refração lunar.

Esta noite assim romântica e latescente, convidava a divagações e a fugas da realidade, diante da ascensão da lua, majestosa e evocadora, que faz com que o luar de agosto cause desgosto até mesmo ao luar de janeiro, tão amado do poeta Augusto Gil.

Identificando-se a lua com a rua, nessa manifestação sentimental das almas pré-destinadas, aliaram-se as mornas melodias de um acordeon, os solos dolentes de um violino, o lirismo de versos ditos em surdina e a modulação de modinhas seresteiras.

(...)

Para completar o friso da iluminura armoniosa, faltava um violão, o companheiro dos cantores em suas endeixas apaixonadas. E quando alguém decidiu que o popular instrumento viesse integrar o conjunto, parece que num coração feminino floriram lírios brancos enluarados.

Na rua, de pedrouços mal ajustados, a lua continuava a espalhar o estendal das brancas nebulosas, como diria o poeta negro das “Evocações”. O violino gemia e enlanguescia nas valsas enternecedoras; o acordeon trazia para o ambiente qualquer coisa do extremo sul, na doçura suplicante dos tangos e boleros. Unicamente as modinhas eram singelamente sentimentais, voltadas para as noites de boêmios esquecidos no tempo.

(...) Os dois rios inamistosos, tinham esteiras de luz, quando uma quilha notâmbula deixava o porto com outro destino.

Toda a cidade de Santarém repousava ao luar, esquecida e vulgaríssima, como se unicamente aquelas almas amigas, nessa noite de luar reminiscente, amassem a música, a poesia e a modinha consoladora.

Eis então, camaradas canalhas, somos fruto de uma longa tradição de desordeiros e biriteiros de alta noite, que vagam pelas ruas de Belém e de outras cidades paraenses a cantar para a lua ou qualquer outra musa que se apresente. Precisamos, portanto, reviver essa tradição. É momento de a canalha reconhecer seu papel na sociedade e assumir sua condição de boemia seresteira. Retomemos as lutas regadas à cerveja, cachaça e gengibirra, vinho e catuaba nas noites de luar. Retomemos a tradição dos moços da rua do Rosário que cantavam sedutoramente para as cocettes de plantão, de que nos fala Pádua Carvalho (com muito preconceito é claro). Retomemos as rodas alegres como as que participou J. Eustachio de Azevedo. Ou as serestas como a de Bruno de Menezes em Santarém. Sem falar em outros momentos como as rodas do Bar do Parque, ou as do Bar da Condor (hoje Palácio dos Bares), seresta do Carmo (aquela que ocorria ainda nos anos 80 e também esta mais recente que participamos) ou da Praça da Batista Campos, também antigo espaço de serestas em Belém.

Tendo em vista estas considerações, de maior interesse aos quadros boêmios da canalha, eu e um grupo ainda pequeno de canalhas e simpatizantes tomamos a iniciativa de iniciar o projeto de cunho absolutamente social e filantrópico: “Seresta da canalha”. Nossa primeira reunião deu-se na sexta feira, dia 09 do corrente mês, cujos acontecimentos tomo a liberdade de relatar:

Estávamos Carlos, William (este ainda um simpatizante da Canalha, mas que pelos serviços prestados à causa em tão curto tempo tem todo meu apoio para galgar cargos da mais alta responsabilidade em assuntos de biritagens, sacanagens de todos os tipos e similares) e eu a tramar ações boêmias em uma bela sexta feira semi-chuvosa de nossa querida Belém. Lembramos então de que havíamos adquirido recentemente um pequeno isopor de bebidas, que havia sido usado no carnaval, afinal comprar cervejas em lata no supermercado sai mais em conta que comprar nos bares.

Resolvemos então comprar algumas latinhas, colocar gelo e irmos à praça da república ver o movimento. De fato foi o que fizemos, tomamos cerveja na praça da república até altas horas e ao acabar a primeira rodada de cervejas dirigimo-nos ao Líder da Batista Campos, onde, após reabastecermos as cervejas e surrupiarmos alguns tira-gostos, que não entraram na nota do caixa – que fique cá entre nós – voltamos a perambular pela cidade. Algumas horas na Praça Batista Campos, depois algumas horas na Praça da Trindade e, finalmente, amanhecemos na República.

Cabe ressaltar que ainda na Trindade, Carlos um tanto quanto inebriado, empolgou-se: tentou dar cerveja à estátua de Rui Barbosa, urinou no gramado cheio de flores – espero que não as tenha matado - e quis embriagar o guarda que fazia a patrulha no local. Já na Praça da República amanhecemos dormindo no banco (eu) e na calçada (Carlos), William permaneceu bebendo a velar-nos fielmente, o que mostra que além de tudo os canalhas são prestativos com os demais canalhas bêbados.

Propomos, então, caros canalhas, que esse projeto cujo protótipo se realizou naquela sexta-feira seja continuado pelos demais integrantes e simpatizantes que devem engrossar as fileiras de nossas serestas. Propomos que uma vez ao mês, de preferência à lua cheia, peguemos nosso “isopor itinerante” – como foi batizado -, enchemo-lo de cervejas e vaguemos pelas praças de Belém a cantar e poetizar até o desbunde.

Uma questão é fundamental: naquela noite não tínhamos um tocador de viola, o que não deixou mais perfeita a farra. É necessário pôs que os canalhas interressados neste projeto de cunho social e filantrópico resolvam este problema arregimentando um canalha ou um simpatizante para que na próxima seresta já estejamos devidamente organizados. Uma outra questão é também importante, na referida farra pretendíamos terminar a noite (e começar o dia) no Ver-O-Peso, como deve ser feito por qualquer boêmio que se preze, mas em decorrência do reduzido número de canalhas presentes e do já acelerado estado de embriaguez, conseguimos – depois de andar da República à Batista Campos, desta à Trindade e novamente à República – apenas ficar às proximidades do Teatro da Paz onde finalizamos nossa empreitada. É necessário pós chegarmos até o Ver-O-Peso, já ensaiando o grande dia da Festa da Chiquita, quando tradicionalmente vamos encontrar “Nazíca” no “Verópa”, depois de ver Heloi e suas meninas.

À seresta, então, canalhas!!!

Esperamos a reposta dos Canalhas com a certeza do sucesso deste empreendimento!

Tony Leão (Assessor especial para assuntos aleatórios e de filosofia profunda da canalha, boêmio inveterado, ganhador do “Garrafa de Ouro” em 1999 e do “Porre do Ano” em 2000, canalha histórico da primeira geração. Atualmente dedica-se, juntamente com Carlos e William, à criação do projeto “Seresta da Canalha”, que tem como objetivo de cunho social e filantrópico reintegrar antigos boêmios, hoje quase todos cheio de reumatismos, endividados e cansados de farra, à vida alegre da boemia e devassidão).